o que se ouve entre a opy e a escola - corpos e vozes da ritualidade guarani


índice

capítulo cinco

capítulo sete




capítulo seis
polifonia dos corpos


polifonia e perspectivismo

Metade da palavra pertence a quem fala e metade a quem escuta; e este deve preparar-se para recebê-la como se preparam para receber a bola os jogadores de futebol, de acordo com a força e a direção do lance.
Montaigne, Ensaios


“Um ritual religioso não pode ser inteiramente substituído por palavras. Nem sequer existe um substituto verbal realmente adequado para o mais simples gesto humano. Negar isso conduz ao racionalismo e ao simplismo mais grosseiros. Todavia, embora nenhum desses signos ideológicos seja substituível por palavras, cada um deles, ao mesmo tempo, se apóia nas palavras e é acompanhado por elas, exatamente como no caso do canto e de seu acompanhamento musical.”
(Bakhtin, 1995:38)


“Quando duas ou mais pessoas conhecem um e o mesmo fato diz-se de cada uma delas que está consciente do fato em relação à outra, o que equivale a conhecer conjuntamente”. (Hobbes, 1979:41)

O regime enunciativo acionado pelos Araweté em seus cantos rituais, o qual se caracteriza lingüisticamente como polifonia, constitui um marco no percurso da etnologia de Viveiros de Castro. Como esse jogo de vozes é um recurso central nesta narrativa, recorreu-se à obra de Mikhail Bakhtin, filósofo responsável por cunhar o tema.
A filosofia da linguagem concebida por Mikhail Bakhtin tem como eixo a comunicação na vida cotidiana. Esse aspecto, articulado ao caráter indissociável do par palavra-corpo , conecta diretamente seu pensamento a esta investigação o que justifica a eleição dessa teoria lingüística.
Esse princípio leva à compreensão da linguagem no campo de forças tensivo da socialidade, além de redimensioná-la no âmbito da epistemologia, como continuum semiótico. Nela a enunciação é a unidade de base da língua.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, pressupõe a natureza inter-subjetiva do signo a partir da dimensão estética da linguagem como mediação necessária à produção do conhecimento, evidenciando o caráter social da epistemologia, em permanente reelaboração.
A expressão tem suas condições sociais de possibilidade. Assim, certo conhecimento depende de tais condições sociais expressas na interação verbal, com as quais orienta-se para criar.
Essa dinâmica do signo, indissoluvelmente ligado à situação social, fundamenta a teoria da interação verbal, o dialogismo. A atenção volta-se para as interações mais que para as definições, o que leva a priorizar a estilística em sua concepção de gênero literário.
Essa teoria do signo sustenta-se sobre a materialidade semiótica. A própria consciência só pode surgir e se afirmar como encarnação material em signos num material flexível veiculado pelo corpo. O discurso interior é um exemplo.
A compreensão manifesta-se na relação tensiva entre signos, de embates e convergências. A interação assegura o encadeamento de criatividade contínuo. Em nenhum ponto a cadeia se quebra, em nenhum ponto ela penetra a existência interior, de natureza não material e não corporificada em signos.
Esse continuum material apóia os jogos de força que definem a intersubjetivação. Ele emerge do corpo a corpo com as intimações sociais na dimensão estética que o caracteriza como mediação imanente . Coordenando-se às condições oferecidas por seu contexto pode-se recriar a interface, redimensionando os extremos sujeito e objeto.
Ao descartar as explicações tanto supra (idealismo) como infra-humanas (psicologismo) ao afirmar o caráter social e estético do signo, apontando assim, a amplitude da interação verbal, essa filosofia da linguagem do início do século pode contribuir com estes estudos do imaginário.
a interação enunciativa

O que teria levado os primeiros escritos de Bakhtin a serem assinados por seus companheiros? Problemas políticos de publicação na URSS dos anos vinte? Perseguição ou censura? Simples coincidência? O certo é que ressonâncias fáticas constituem essa obra de inspiração pragmática, que tem no tema do discurso citado ou do discurso de outrem seu foco central.
O círculo de Bakhtin elabora sua pesquisa a partir de uma concepção de produção de linguagem articulada com as teses do materialismo marxista. O signo define-se a partir da reciprocidade com seu contexto. A interação enunciativa é estudada diacronicamente por seu grupo via método comparativo, coordenando as transformações do discurso citado na literatura das línguas européias.
Nesse primeiro período, suas teses sobre a interação enunciativa encaminham sua concepção do dialogismo, segundo a qual, a palavra constitui-se na interface eu/tu, em que a reciprocidade conduz à reflexividade. De forma que através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise em relação à coletividade.
Em seus estudos de caso, Bakhtin elabora uma poética a partir da obra de Dostoievski, fundamentado em uma teoria do romance. Os matizes do discurso citado, explorados por esse autor, encaminham-no à concepção de polifonia, característica que o coloca como precursor do individualismo relativista que marca a produção narrativa do início do século XX.
Segundo os autores, o discurso citado e o contexto narrativo unem-se por relações dinâmicas, complexas e tensas. A literatura transmitiria assim um espectro de sutilezas mais amplo das transformações na interorientação sócio-verbal. As categorias possibilitariam captar esses matizes em suas sutilezas.
Esboçando as tendências básicas dessa reciprocidade dinâmica entre a interação enunciativa e seu contexto discursivo, define quatro tendências ao longo da era moderna. O período medieval, como dogmatismo autoritário, é caracterizado pelo isolamento e a monumentalidade do discurso citado. O segundo período caracteriza o dogmatismo racionalista da literatura dos séculos XVII e XVIII. Utiliza-se de recursos que visam a conservação da integridade estilística e sintática do discurso de outrem.
Na terceira tendência, já se percebem contornos atenuados entre narrador e discurso citado. É o individualismo realista e crítico da passagem XVIII-XIX, caracterizado pelo estilo pictórico, em que o autor infiltra com réplicas e comentários o discurso citado. Esforça-se por desfazer, a partir do contexto narrativo, sua estrutura compacta via discurso indireto livre.
O individualismo relativista marca o último conjunto de impressões lingüísticas sobre o discurso citado. Sua característica central é a inversão ocasionada pela emergência com que o discurso citado vem à tona. Nessa emergência, a tônica desloca-se para esse discurso, que se infiltra no corpo do narrador. É o discurso citado que dilui o contexto narrativo.
Esse contexto narrativo é invadido pela subjetividade que caracteriza o discurso citado. Torna-se o locus a partir do qual emanam as vozes. Esse é um problema central da narrativa etnológica. Sua abordagem nesta investigação busca referir a interação tensiva com o discurso citado de que resulta o texto escrito. Ao invés de procurar forjar o outro a nossa subjetividade, o que o percurso traçado visa é, a partir dessa relação, liberar outros possíveis, os quais sirvam para reformular a própria relação de conhecimento, redefinir seus contornos e, quiçá, encaminhar a experiência limite de utilizar a estrutura de Outrem para circunscrever a intersubjetividade e marcar seus limites e implicações, entre elas, reafirmar ainda mais o sujeito e o objeto.

Esse desdobramento evidencia o relativismo que descentra essa consciência narrativa em transreflexividades. Esse locus é relativizado e instala-se no foco narrativo um jogo de forças de intencionalidades diversas. O narrador que marcava a unidade do texto revela seu silêncio e suas sombras; é esquartejado em meio ao embate de forças no qual essas figuras travam relações. A pluralidade de vozes dissemina-se numa diversidade de corpos. É a polifonia.


perspectivismo e polifonia

“De minha parte, em todas as coisas, ouço as vozes e sua relação dialógica.” (Bakhtin, 1997:413)

Os princípios dialógico e polifônico da linguagem que encaminham suas teses da maturidade, embasando sua teoria do romance, tem início nos primeiros escritos de Bakhtin, dedicados à investigação da interface autor/herói.
Essas investigações, ainda que imaturas e publicadas postumamente, sobre o desdobramento autor/herói, já redimensionam o modelo sujeito/objeto, a partir de seus pressupostos intersubjetivos .
Percebe-se o alcance epistemológico desse princípio, primeiramente por problematizar a linguagem, reconduzindo a epistemologia dos extremos idealismo/empirismo a seu medium imanente.
O ponto de partida seria a noção de exotopia, definida como a propriedade do autor de englobar uma subjetividade outra. Essa propriedade baliza a condição de abordagem da vida como construção estética.
Apesar da interessante similaridade com o lugar do antropólogo, o que realmente se veio buscar aqui foi o lugar do corpo nos fundamentos dessa arquitetônica . No plano exterior configura-se a forma espacial do herói. O olhar do outro(s) circunscreve todo o meu corpo, e meu o dele(s). A dimensão interior problematiza seu todo temporal, balizados por nascimento e morte, limites da minha consciência. Conforme Todorov:
“Logo, o outro é ao mesmo tempo constitutivo do ser e fundamentalmente assimétrico em relação a ele: a pluralidade dos homens encontra seu sentido não numa multiplicação quantitativa dos ‘eu’, mas naquilo em que cada um é o complemento necessário do outro.” (Bakhtin, 1997:15)

Tomando o corpo como modelo desse medium que encaminhara sua concepção de linguagem a partir de seus desdobramentos intersubjetivos, optou-se por alinhar a convergência entre corpo e os jogos enuciativos. A ritualidade fornece aqui o campo que veicula princípios para uma epistemologia pautada nessa articulação da qual o corpo fornece a matriz conceitual.
Essa matriz encaminha, conforme os autores aqui presentes, tais como Nietzsche, Bachelard, Deleuze e na antropologia Clastres, Seeger, Viveiros de Castro, à dimensão hermenêutica da criação literária, especialmente tomando a hermenêutica antropológica, centrada na interação com o relato. Essa tendência evidencia o corpo do texto, redimensionado pela intertextualidade em que se insere, pelo lugar que ocupa nela. O texto aparece, dessa forma, evidenciando seu caráter literário na intertextualidade, renunciando ao dogmatismo do sentido fechado na relação sujeito-objeto.
Aplicado à ritualidade, esse modelo de abertura encontra-se no corpo dos celebrantes. Assim como Bakhtin demonstra como a configuração espacio-temporal do personagem é elaborada através da circunscrição do corpo pela exotopia ou por esse olhar de fora/olhar do outro, pode-se pensar as funções desempenhadas por esse corpo rítmico coletivo.
Com Leroi-Gourhan, encontrou-se nos finais do Musteriense, há 32.000 anos, para se cogitar o alcance desses primeiros testemunhos de expressão rítmica em fragmentos de osso e pedras marcados por incisões regularmente espaçadas sobre uma protosocialidade nesse período em que surgem as primeiras habitações. Nessa filogênese o ritmo é responsável por guiar o homem na constituição de uma tempo-espacialidade específica, funcionando como o principal elemento da socialização humana.
As práticas de ritualidade envolvendo o corpo são estudadas pelo autor caracterizando uma estética fisiológica, ou seja, uma estética que se estende ao nível da base biológica, não se detendo nos limites da consciência. “Nos rituais excepcionais, nas revelações extáticas, nas práticas de possessão, no decurso dos quais os sujeitos se entregam a danças ou a manifestações sonoras carregadas de um elevado poder sobrenatural, uma das soluções universalmente adotadas consiste em colocar o actor fora do seu ciclo rítmico quotidiano, quebrando, através do jejum e da falta de sono, a rotina do aparelho fisiológico. Se o resultado final é a excitação psíquica, a verdade é que o ponto inicial é de caráter visceral; a mutação de registo é irrealizável se não partir das profundezas do organismo.” (1987:88)
É possível vislumbrar aqui de que forma agenciamento e corporalidade imbricam-se. Como a conquista do fisiológico envia, através da mediação do complexo ritual, ao jogo de enunciações. A liberação desse regime de agenciamentos instaura a multiplicidade sobre um plano de imanência.
Em Nietzsche, O nascimento da tragédia simula o próprio diasparágmos dionisíaco ao descrever a origem da tragédia como a passagem do cerimonial constituído do coro dos epoptas, para o drama, através da aparição do deus em cena [darstellen]. Essa passagem é descrita pelo autor como um intenso e inenarrável jogo de olhares sobre corpos. Dioniso, ponto central da visão, está realmente presente, não é representado por um personagem. O deus, antes encarnado em música dissonante, toma forma, caracterizando a aliança apolínea, e introduz o elemento dramático na origem da tragédia. O corpo coletivo que encarnava, via música dissonante, o êxtase [ex-stasis, ficar fora de], possibilitando o desdobramento interior numa multiplicidade unificada, tem seu centro deslocado para uma unidade múltipla .
Na obra de Clastres, acompanham-se as metamorfoses do corpo no próprio texto que, a medida que integra a perceptualidade Guarani, ganha autonomia etnológica. O autor problematiza o agenciamento, já apropriado em sua escritura, em termos de princípio de identidade, encaminhando as dimensões do uno e do múltiplo no pensamento Guarani.
Sua concepção da corporalidade alinha-se à Deleuze e Guattari de O Anti-Édipo. Os autores, a partir da noção de sociedades de inscrição, segundo a qual “a sociedade não é primeiramente um meio de trocas onde o essencial seria circular ou fazer circular, mas um socius de inscrição onde o essencial é marcar e ser marcado” (1976:180), instalam no corpo o regime de socialidade primitivo, caracterizando as Sociedades contra Estado, ou conforme os autores máquinas de guerra. A dor iniciática é tomada como modulação do regime de intensidades que opera a inscrição no corpo, definindo identidades e alteridades.
As concepções de Clastres parecem caminhar pari passu à nascente etnologia regional, destacando-se, no entanto, pelo refinado estilo de sua escritura, bem como por seu teor filosófico.
Viveiros de Castro é sensivelmente influenciado pela criação do etnólogo. Responsável, ao lado de, entre outros, Anthony Seeger, por essa etnologia ameríndia fundada no corpo, elabora o conceito de perspectivismo ameríndio, visando considerar o status epistemológico do pensamento dessas sociedades em relação ao pensamento daqueles que a teorizam.
As cosmologias ameríndias, fundadas numa ontologia da reciprocidade de concepção sociomórfica que culmina no multinaturalismo, conduzem a uma polifonia narrativa que emerge no corpo e é explorada no âmbito dos complexos cerimoniais. A categoria de reciprocidade tem caráter paradigmático e instaura o cosmos como um texto dialógico e polifônico, no qual o homem não é o único foco de voz ativa.
A ritualidade articulada à toda linguagem multidimensional do feitos cotidianos equivale aos fios que constituem as propriedades humanas dessa tessitura recriada incessantemente em complementariedade com a diversidade de agentes e sujeitos que povoam o cosmos.
O texto multidimensional da existência, vivenciado no corpo como zona intersticial imanente, encontra na ritualidade um complexo de coordenadas da interação enunciativa que conduz esta narrativa. A tessitura desses fios dá-lhes consistência.
Por fim, a corporalidade, tomada como interface na concepção sociomórfica do cosmos, articula-se a interação enunciativa como princípio regulador do perspectivismo.
Ao afirmar a corporalidade do texto, em contraste com sua neutrlização espaço-temporal e de subjetivação o que se afirma é o exercício de entregar-se, com máximo desprendimento, ao momento presente, concentrar-lhe intensidade e não dispersá-lo lançando-o num futuro imaginário com o ímpeto de atravessar o tempo. A opção é propriamente pela vida, pela abertura de possibilidades que não se perca no abstrato a que tendem as idéias. Destaca-se assim o valor mais estético de criação da narrativa que propriamente científico da verificação. Ao liberar-se do ímpeto de querer ser tudo, decide-se por uma vida.


Foucault

Com a retidão se governa o império
Com a habilidade se manejam as armas
Mas com a não-ação se conquista o mundo
Como sei que isto é certo?
Porque
Quanto mais leis e proibições houver no mundo
Mais pobre e mísero será o povo
Quanto mais armas tenha o império
Mais desordem e confusão haverá entre o povo
Quanto mais artes e ofícios tiver o povo
Mais coisas supérfluas e inúteis haverá
Quanto mais ordens e leis ditem os governos
Mais salteadores e ladrões haverá
Logo, o Sábio
Sem agir, ensina as pessoas
a se aperfeiçoarem por si mesmas
Sem violência, ensina as pessoas
a ficarem tranqüilas por si mesmas
Sem fazer comércio, ensina as pessoas
a se beneficiarem por si mesmas
Sem desejos, ensina as pessoas
a se tornarem simples por si mesmas

(Lao Tse)


Evoca-se aqui a obra de Michel Foucault devido a sua teoria do enunciado que permite encaminhar a articulação corpo-vozes que se vêm empreendendo. O jogo de vozes que nos interessa emana da ritualidade da opy e ramifica-se no texto. Do biopoder aos processos de subjetivação, o querer-artista,
Estabelecendo os pressupostos para a definição e o estudo da biopolítica ou do biopoder, Foucault, procura demonstrar de que modo o discurso histórico, esse intensificador do poder, constitui-se no início da era moderna, a partir do princípio de que a guerra é a política continuada por outros meios. Repare-se na apropriação do tema pelo regime enunciativo.
“A guerra é que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor de suas engrenagens, faz surdamente a guerra.(...) Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de alguém.(...) Temos de redescobrir a guerra, porquê? Pois bem, porque essa guerra antiga é uma guerra permanente. (...) Aí está o primeiro discurso na sociedade ocidental desde a Idade Média que se pode dizer rigorosamente histórico-político. Primeiro por causa disto: o sujeito que fala nesse discurso, que diz ‘eu’ ou que diz ‘nós’, não pode, e aliás não procura, ocupar a posição do jurista ou do filósofo, isto é, a posição do sujeito universal, totalizador ou neutro.” (Foucault, 1999:59)

O trecho marca a passagem do que se chamou teoria da soberania, que sustenta um discurso unificado, ainda que sob uma organização ternária, em torno do corpo do soberano, o autômato em Hobbes, para uma concepção binária de sociedade resultante da dupla contestação, popular e aristocrática, do poder régio.
A partir da definição desse discurso encaminha a concepção da dialética como fenômeno de pacificação filosófica e política desse discurso partidário e, finalmente, à apropriação do discurso científico como tecnologias do poder, quando se define a norma que permite a um só tempo controlar a ordem disciplinar do corpo e os acontecimentos aleatórios de uma multiplicidade biológica.
Foucault, em Arqueologia do Saber, retoma sua obra: reelabora seus princípios e redefine seus conceitos. Caracterizando o enunciado, propõe o desdobramento das dimensões de sujeito do enunciado e autor da formulação como traço exclusivo da função enunciativa. Segundo ele, o sujeito do enunciado tem pouco a ver com a intenção significativa.

“É um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes; mas esse lugar, em vez de ser definido de uma vez por todas e de se manter uniforme ao longo de um texto, de um livro ou de uma obra, varia  ou melhor, é variável o bastante para poder continuar, idêntico a si mesmo, através de várias frases, bem como para se modificar a cada uma.” e conclui: “Descrever uma formulação enquanto enunciado não consiste em analisar as relações entre o autor e o que ele disse (ou quis dizer, ou disse sem querer); mas em determinar qual é a posição que pode e deve ocupar todo indivíduo para ser seu sujeito.”
(1986:109)

Refere-se a tais desdobramentos “assim não é a mesma relação que existe entre o nome de Nietzsche por um lado e, por outro, as autobiografias de juventude, as dissertações escolares, os artigos filológicos, Zaratustra, Ecce Homo, as cartas, os últimos cartões postais assinados por ‘Dionysos’ ou ‘Kaiser Nietzsche’, as inumeráveis cadernetas em que se misturam notas de lavanderia e projetos de aforismos” (1986:27) para colocar em questão uma descrição global, operando por unidades formais e em que as revoluções não passam de tomadas de consciência, e pensar uma história geral que desdobra-se em descentramentos, dispersões, em que os discursos ou os enunciados denunciam o jogo de forças que os perpassa silenciosamente.
Essa função de expressão percorre toda essa arqueologia do saber. Manifesta-se no debate do autor com sua própria obra, que se inicia com a liberdade enunciativa (que ele próprio atribui no corpo do texto) própria à introdução e se estende ao longo do texto, em que traça os limites de suas obras anteriores, suas contradições, suas redefinições, concluindo com um desdobramento do sujeito do enunciado que debate com seu duplo.
Se essa função enunciativa é a segunda a definir o enunciado enquanto tal, há uma primeira a ser considerada. A primeira função com que Foucault define o enunciado é a relação com seu correlato ou referencial. O autor desloca o enunciado do nível gramatical ou lógico. No nível enunciativo, os enunciados definem-se por sua interconstituição.

“O referencial do enunciado forma o lugar, a condição, o campo de emergência, a instância de diferenciação dos indivíduos ou dos objetos, dos estados de coisa e das relações que são postas em jogo pelo próprio enunciado; define as possibilidades de aparecimento e de delimitação do que dá à frase seu sentido, à proposição seu valor de verdade.”
(1986:104)

O perspectivismo é o recurso que permite desmontar, no próprio processo de criação, a unidade subjetiva, à qual Foucault refere-se como fazer da consciência humana o sujeito originário de todo devir, determinada pela consciência objetiva. Nietzsche prioriza o sujeito enunciante como pluralidade de vozes, como embate dialético em detrimento da unidade do autor da formulação. A emergência da polifonia é uma contribuição da filosofia dionisíaca.
Visto que esse recurso articula as duas funções enunciativas descritas por Foucault, os enunciados passam a ter outras dimensões. Não se determinam pelas unidades discursivas, centradas diretamente em seus referentes. Deixam de confundir-se e ganham espessura, autonomia para intervir sobre seus referentes.
A partir da concepção de enunciado, Deleuze comenta em Foucault essa dimensão intertextual da obra do autor contrapondo-a à epistemologia de Bachelard.

“O essencial não é haver superado uma dualidade ciência-poesia que ainda perturbava a obra de Bachelard. Não é também haver encontrado um meio de tratar cientificamente textos literários. É haver descoberto e medido esta terra desconhecida onde uma forma literária, uma proposição científica, uma frase cotidiana, um non-sense esquizofrênico, etc. são igualmente enunciados, mas sem medida comum, sem nenhuma redução ou equivalência discursiva. E é esse o ponto que nunca foi atingido pelos lógicos, pelos formalistas ou pelos intérpretes. Ciência e poesia são, igualmente, saber.” (Deleuze, 1988:30)